A Carteira de Identidade dos Marítimos e os Requisitos para Admissão de Tripulação Estrangeira – Direito Comparado – Brasil e Argentina – Ad. Marcel Stivaletti y Daniel Reis (desde Brasil)

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Os trabalhadores marítimos – também nomeados “gente do mar” pelas convenções mais recentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – possuem um documento de identidade próprio conhecido como carteira marítima, ou ainda, SID (Seafarers Identity Document). Esse documento, essencial aos marítimos, permite que esses trabalhadores desembarquem, transitem, reembarquem em outra embarcação ou sejam repatriados.

A Convenção nº 108, primeira norma da OIT a tratar especificamente do tema, foi internalizada no ordenamento jurídico brasileiro em 1966 por meio do Decreto n. 58.825/66, e dispunha em seu artigo 4º sobre os requisitos necessários para a confecção e validade da carteira de identidade dos marítimos, sendo que os seguintes dados deveriam constar no referido documento: a) nome por extenso (prenomes e nomes de família se for o caso); b) data e lugar de nascimento; c) nacionalidade; d) sinais físicos identificadores; e) fotografia; f) assinatura do titular ou, em se tratando de pessoa que não saiba escrever, digital do polegar.

Ocorre que, a ratificação, em 21 de janeiro de 2010, da Convenção nº 185 (revisada) implicou a denúncia, na mesma data, da Convenção nº 108 da OIT, de 13 de maio de 1958. Dessa forma, a Convenção nº 185, atualmente vigente, em seu anexo I, torna obrigatória a presença das seguintes informações para a validade e eficácia das Carteiras de Identidade dos Marítimos, a saber: Autoridade expedidora; número(s) de telefone, correio eletrônico e site Web da autoridade; data e local de expedição; fotografia digital ou original do titular; nome completo do titular; sexo; data e local de nascimento; nacionalidade; toda característica física cuja indicação possa facilitar a identificação; assinatura do titular; data de validade; tipo ou designação do documento; número de documento único; número de identidade pessoal (facultativo); molde biométrico correspondente a uma impressão papiloscópica digital em forma de números em um código de barras, de acordo com uma norma que será posteriormente elaborada; zona de leitura mecânica; selo ou timbre oficial da autoridade expedidora.

Em que pese o Brasil ter denunciado a Convenção nº 108, a carteira expedida com base em seus termos seguiu aceita em decorrência das dificuldades (para novas emissões) causadas pelos efeitos da pandemia da COVID 19. A flexibilização da regra, que ainda permitia a apresentação das carteiras emitidas com esteio na citada convenção, teve fim no último dia primeiro de maio, conforme ressaltado pelo órgão federal. Dessa forma, na nota emitida ainda no primeiro trimestre do ano corrente, a Polícia Federal destacou que a partir de 01/05/2023 não seria mais aceito o uso da carteira de marítimo expedida nos termos da Convenção nº 108 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, conforme orientação repassada ainda em 2022, para fins de controle migratório.

Desde a mencionada data, portanto, vale a Convenção nº 185 da OIT, que ainda apresenta um número menor de países signatários, quando comparado com o diploma anterior. Essa constatação, na prática, imporá dificuldades aos marítimos de países ainda não aderentes à novel convenção, sujeitando as empresas de navegação, inclusive, às respectivas autuações. É o que vaticina o próprio comunicado emitido pela Polícia Federal, ao concluir que caso alguma pessoa seja transportada para o Brasil sem a documentação migratória regular, o transportador sujeitar-se-á à multa prevista no Inciso V do artigo 109 da Lei 13.445/2017.

Ademais, é importante destacar que as novas exigências advindas com a referida convenção convergem com as disposições do Decreto nº 10.671/2021, que promulgou o texto da Convenção sobre Trabalho Marítimo – CTM, ipsis litteris:

“Norma A2.1 – Acordos de emprego de gente do mar

1. Todo Membro adotará leis ou regulamentos para assegurar que os navios que arvoram sua bandeira preencham os seguintes requisitos:

e) a gente do mar deverá receber um documento no qual conste o registro referente a seu emprego a bordo do navio.”

[…]

3. O documento a que se refere o parágrafo 1º, alínea “e” desta Norma não deverá conter nenhuma observação a respeito da qualidade do trabalho do interessado a bordo, nem de seu salário. O formato do documento, os pormenores a serem registrados e a forma de seu registro serão determinados pela legislação nacional.”

“Diretriz B2.1 – Acordos de emprego da gente do mar

Diretriz B2.1.1 – Registro de empregos

Ao determinar os dados a serem consignados no registro de empregos a que se refere a Norma A2.1, parágrafo 1º, alínea “e”, o Membro assegurará que esse documento contenha suficiente informação, traduzida em inglês, para facilitar a obtenção de novo emprego ou para atender os requisitos do serviço marítimo para melhor classificação ou promoção. A Caderneta de Inscrição e Registro – CIR poderá satisfazer aos requisitos do parágrafo 1º, alínea “e”, da referida Norma.”

É relevante destacar, ainda, que, conforme o dispositivo colacionado, o documento utilizado no Brasil para o exercício das atividades profissionais dos aquaviários em embarcações nacionais é denominado Caderneta de Inscrição e Registro (CIR). A NORMAM-13/DPC (Norma da Autoridade Marítima) regulamenta a emissão da CIR, que deverá ser gratuita, quando se tratar da 1ª via. A referida norma traz ainda as hipóteses de suspensão e cancelamento da inscrição dos aquaviários.

Em síntese, é de suma importância que, diante das recentes mudanças promovidas pela implementação da Convenção nº 185 da OIT no Brasil, os armadores observem a regularidade do documento de identidade dos trabalhadores que laboram em seus navios, a fim de evitar possíveis autuações administrativas e, por conseguinte, o dispêndio com multas.

Passamos, doravante, a tratar das nuances que envolvem os marítimos que laboram na Argentina. Segundo informações divulgadas pela DataMar News, o Porto de Buenos Aires é líder de importações e exportações na região do Prata. Depreende-se, assim, que é intenso o tráfego de navios na região portuária do país e consequentemente faz-se presente o trabalho marítimo. Entretanto, questiona-se quais são os instrumentos normativos regulamentam o documento de identidade desses trabalhadores no país.

Inicialmente, é relevante destacar que a Argentina é signatária da Maritime Labour Convention – MLC, ou ainda, Convenção nº 186 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), norma internacional que buscou incorporar, de maneira coerente, as Convenções e Recomendações internacionais existentes sobre Trabalho Marítimo. Contudo, as Convenções nº 108 e 185 da OIT, que regulamentam os documentos de identidade dos trabalhadores marítimos, não foram ratificadas pela Argentina.

Apesar de não ter ratificado tais Convenções, a Prefectura Naval da Argentina dispõe na ordenanza (disposição de caráter normativo) nº 6 – Tomo 5, de 2005, acerca da “libreta de embarco”, documento oficial dos trabalhadores marítimos. Normas anteriores como o Régimen de la Navegación Marítima, Fluvial y Lacustre (REGINAVE) já dispunham sobre o tema. A Ley N° 20.094 de la Navegación, por exemplo, menciona em seu artigo 107, ipsis litteris:

Art. 107. – Todo integrante del personal embarcado, una vez inscripto en el Registro Nacional del Personal de la Navegación, debe tener una «libreta de embarco», sin la cual nadie podrá embarcarse ni ejercer función alguna en los buques y artefactos navales de matrícula nacional. La autoridad competente establecerá la forma en que se expedirá el mencionado documento.

O referido dispositivo exprime a necessidade de expedir-se um documento de identidade, denominado “libreta de embarco”, para todos os trabalhadores inscritos no Registro Nacional del Personal de la Navegación. A ordenanza nº 6 em seu Anexo Nº 1 traz o modelo para confecção desse documento.

Ao verificar o modelo exposto, nota-se que este não está totalmente adequada à Convenção nº 185 da OIT, porquanto ausentes requisitos como a descrição de características físicas cuja indicação possam facilitar a identificação do trabalhador e zona de leitura mecânica, de acordo com as normas de segurança fixadas pela OACI (Organização da Aviação Civil Internacional) em seu documento 9303.

Por fim, não se pode olvidar que, dada a intensidade do tráfego que acomete os portos argentinos, um sem-número de tripulantes estrangeiros ingressam como marítimos no país, ficando por consequência sob a égide da Ley 25.871/2003, promulgada em janeiro de 2004.

ARTICULO 24. — Los extranjeros que ingresen al país como «residentes transitorios» podrán ser admitidos en algunas de las siguientes subcategorías:

(…)

d) Tripulantes del transporte internacional;

O Decreto 616/2010, por sua vez, regulamenta a Lei de Migração especificando a condição dos marítimos estrangeiros para ingresso e permanência no país.

ARTICULO 24.- Los extranjeros que ingresen al país como «residentes transitorios» podrán ser admitidos en las subcategorías establecidas por el artículo 24 de la Ley Nº 25.871, con los siguientes alcances:

(…)

b) Pasajeros en tránsito: se diferenciarán aquí TRES (3) situaciones:

(…)

3. Pasajeros que arriban al país para integrarse como tripulantes o miembros de la dotación de un medio de transporte de bandera argentina o extranjera: quienes ingresen al país con ese propósito contarán con un plazo de permanencia de hasta DIEZ (10) días, sólo excepcionalmente renovable por otro período similar.

A classificação legal conferida pelo ordenamento jurídico argentino, portanto, define o trabalhador marítimo estrangeiro sob a condição de “transitório” e, mais especificamente, como “tripulante de transporte internacional” sob as condições estabelecidas no decreto regulamentar em referência. Assim, são os comandos insculpidos na lei de migração argentina e no seu respectivo regulamento – Lei 25.871/2003 e Decreto 616/2010 – que dão ao marítimo estrangeiro o amparo legal para permanecer nos limites territoriais do país e exercer suas funções laborais.

Marcel Stivaletti é sócio na Advocacia Ruy de Mello Miller (RMM)

Daniel Reis é estagiário na Advocacia Ruy de Mello Miller (RMM)

 

Fontes: https://datamarnews.com/pt/noticias/ranking-de-portos-brasileiros-e-do-plate-janeiro-a-marco-de-2022-e-janeiro-a-marco-de-2021/ https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/5-2005-6.pdf http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/40000-44999/43550/texact.htm http://www.abti.com.br/informacao/noticias/2765-esclarecimentos-sobre-o-ingresso-de-tripulantes-na-argentina https://www.sela.org/media/3221594/ley-25-871-politica-migratoria-argentina.pdf https://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/165000-169999/167004