Liberdade de trânsito x pedágio: o imbróglio da Hidrovia Paraná-Paraguai – Ad. Giovanna Wanderley (desde Brasil)

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É objetivo da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) contribuir para o estabelecimento de uma ordem econômica internacional justa e equitativa que conforme os interesses e as necessidades da humanidade em geral e especialmente, com os dos países em desenvolvimento, sejam costeiros ou sem litoral. Nesse sentido, a CNUDM oferece aos Estados sem Litoral (ESL) o igual tratamento ao concedido a outros navios estrangeiros em portos marítimos, a passagem inocente pelo mar territorial, assim como a liberdade de navegação em zonas econômicas exclusivas (ZEE) e alto mar.

Na América do Sul, o Paraguai e a Bolívia tem o status de ESL. Signatário da CNDUM, o Paraguai se projeta no comércio internacional por meio da navegação interior pela Hidrovia Paraguai-Paraná, cujo instrumento normativo principal é o Acordo de mesmo nome, também subscrito pela Argentina, Brasil, Uruguai e Bolívia, figurando os três primeiros países como Estados de Trânsito.

Segundo os artigo 4º e 5º do Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraná-Paraguai, os países signatários reconhecem, recíprocamente, a liberdade de navegação e, sem prévio acordo daqueles, não se poderá estabelecer nenhum imposto, gravame, tributo ou direito sobre o transporte, as embarcações ou suas cargas, baseado unicamente no fato da navegação.

Em decorrência da liberdade de navegação, o Acordo previu expressamente a liberdade de trânsito, transferência de carga, alijamento, trasbordo e depósito de mercadorias em todas as instalações habiIitadas para esses efeitos, não se podendo efetuar discriminação alguma por causa da origem da carga, dos pontos de partida, de entrada, de saída ou de destino ou de qualquer outra circunstância relativa à propriedade das mercadorias, das embarcações ou da nacionalidade das pessoas. No entanto, o mesmo artigo previu cobrança de taxas em retribuição aos serviços efetivamente prestados aos mesmos para manutenção da navegabilidade da via.

Sob a permissão de cobrança de taxa acima citada, a Argentina passou a cobrar pedágio na Confluência do Porto de Santa Fé no início de 2023, regulamentado pelas Resoluções 625/2022 e 1023/2022, a título de serviços de dragagem e sinalização. A cobrança foi formalmente rechaçada pelos demais países signatários do Acordo sob o argumento de ferimento à liberdade de navegação e ausência de operações efetivas de manutenção da hidrovia.

Em 28 de julho de 2023, por meio de Ofício Judicial Eletrônico (CF 101/2023), o Juízo Federal Cível e Comercial da Argentina ordenou a Interdição de Navegação dos rebocadores HB PHOENIX de bandeira boliviana e HB GRUS de bandeira paraguaia, de propriedade da empresa de navegação Hidrovias do Brasil, por dívidas à título de pedágios devidos à Administração Geral de Portos PARAGUAY FLUVIAL Y LOGISTICA, 2023).

Juridicamente, a situação aconselha a interpretação sistemática de pelo menos duas normas, quais sejam, a CNDUM e o Acordo na HPP, nas quais há previsões expressas de resguardo às legislações internas dos Estados-Partes envolvidos, mas também prevê sistemas de soluções de controvérsias específicos.

Independente das posições políticas em jogo, é legítima a cobrança do pedágio por disposição expressa do Acordo, se efetivamente forem realizadas obras e serviços para manutenção da navegabilidade da Hidrovia. Se tais obras e serviços não foram realizados ou forem irregulares/insuficientes, claramente é o caso de submissão ao Sistema de Controvérsias do Acordo pelos discordantes.

Se existente um Sistema de Controvérsias do Acordo, mas não utilizado, revela-se arbitrário o uso imediato de medida judicial para impedir a navegação de embarcações insolventes, tendo em vista que a CNDUM, norma internacional subscrita pelos membros daquele Acordo, elege a liberdade de navegação como desdobramento do direito de acesso ao mar aos ESL.

REFERÊNCIAS:

ALADI. Acuerdo De “Santa Cruz De La Sierra” Sobre Transporte Fluvial Por La Hidrovía Paraguay – Paraná. Tomo I, 2ª Ed. 2016, p. 7. Montevideu: ALADI. Disponível em: http://www2.aladi.org/sitioAladi/documentos/facilitacionComercio/Libro_AcuerdoSantaCruzSierra_Hidrovia_V1.pdf. Acesso em 30 jul. 2023.

ARGENTINA. Ministerio de Transporte. (2023). Resolución 1023/2022. Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/resoluci%C3%B3n-1023-2022-377533/texto. Acesso em: 30 jul. 2023.

ARGENTINA. Ministerio de Transporte. (2023). Resolución 625/2022. Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/resoluci%C3%B3n-625-2022-372353/texto. Acesso em: 30 jul. 2023.

BRASIL. PLANALTO. Decreto nº 99.165, DE 12 de março de 1990. Promulga a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1990/decreto-99165-12-marco-1990-328535-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 30 jul. 2023.

PARAGUAY FLUVIAL E LOGÍSTICA. (2023). URGENTE: Justicia Argentina ordena Interdicción de dos buques por deuda en concepto de Peaje. Disponível em: https://paraguayfluvial.com/urgente-justicia-argentina-ordena-interdiccion-de-dos-buques-por-deuda-en-concepto-de-peaje/. Acesso em: 30 jul. 2023.

Ad. Giovanna Wanderley

Julio 2.023

Abogada maritimista, especialista en Propiedad Intelectual e Investigador en Derecho Regional del MERCOSUR. Brasil