O paradigma do risco aduaneiro e a sua gestāo por meio de inteligência artificial – Ad. Raquel Segalla Reis (desde Brasil)

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No contexto aduaneiro, risco refere-se ao potencial de ocorrência de eventos que representem o descumprimento de regras que incidem sobre o comércio exterior, objeto dos controles aduaneiros1.

O Glossário de Termos Aduaneiros da Organização Mundial das Aduanas, em sua edição de 2018, incorporou em seu bojo o conceito de gestão de risco definindo-o como “o conjunto de atividades coordenadas das administrações aduaneiras para dirigir e controlar o risco”. Da mesma forma, definiu a análise de risco como “o uso sistemático da informação disponível para determinar com que frequência podem ocorrer os riscos definidos e a magnitude de suas prováveis consequências”2.

No mesmo ano, a Aduana brasileira também incorporou esses conceitos às diretrizes do Programa OEA3, elevando a gestão de riscos a uma condição de princípio norteador do programa de conformidade e segurança, o que confirma a sua importância na agenda de todas as administrações aduaneiras modernas.

Mas antes disso a Organização Mundial das Aduanas já dispunha de um Compêndio de Gerenciamento de Riscos4 que o define como um princípio de gestão aduaneira, por permitir que as alfândegas não apenas cumpram com eficácia suas responsabilidades mais importantes, mas também se organizem e aloquem recursos para melhorar seu desempenho e facilitar as trocas.

A partir de escolhas racionais, a abordagem baseada no risco permite que as Aduanas obtenham melhores resultados de fiscalização com os mesmos ou, às vezes, menos recursos disponíveis.

Em razão desse novo enfoque operacional as administrações aduaneiras têm sido responsáveis pela implementação e execução de uma gama de políticas governamentais,

muitas vezes realizadas em nome de outros órgãos intervenientes no comércio exterior, o que implica na necessidade de um acompanhamento próximo dos índices de inspeções físicas, a fim de garantir que os requisitos regulatórios não sejam excessivamente onerosos em razão dessas intervenções.

Importante destacar que uma estratégia eficaz de gerenciamento de conformidade baseada em riscos reconhece que as diferentes categorias de intervenientes requerem respostas diferentes das administrações aduaneiras.

Incentivos e procedimentos simplificados devem ser aplicados àqueles que são voluntariamente compatíveis (baixo risco); deve haver conformidade assistida para aqueles que tentam ser compatíveis, mas nem sempre conseguem; o cumprimento direcionado àqueles que tentam evitar seguir a lei e cumprimento obrigatório para aqueles que não a cumprem deliberadamente (alto risco)5.

A avaliação do risco aduaneiro não deve, portanto, se dar apenas pelo crivo do controle aduaneiro convencional, baseado na coação e na força da lei (enforcement), mas na perspectiva de cooperação e conformidade (compliance). A estratégia de fiscalização deverá ser diretamente proporcional ao comportamento adotado pelo interveniente de comércio exterior.

E nesse contexto de gestão de risco operacional constata-se claramente que as administrações aduaneiras só alcançaram essa robustez de avaliação, seleção e direcionamento graças à análise preditiva e ao aprendizado de máquina. Isso porque a objetividade, a previsibilidade, a celeridade e a segurança que os mecanismos tecnológicos oferecem ao agente público no exercício de sua função teoricamente apresentam a melhor decisão possível em um caso concreto, se comparadas com a capacidade humana6.

Todavia, a despeito dos indicados benefícios, a tecnologia digital aplicada ao controle aduaneiro traz em si determinados aspectos que suscitam questionamentos relevantes. O primeiro deles, pela imprescindível e inafastável compreensão dos termos, refere-se à locução eleita para designá-la.

Convencionou-se por inteligência artificial uma modelagem cognitiva que, além de não ser inteligente, tampouco é artificial. A inteligência é propriedade atribuível exclusivamente aos organismos, não aos mecanismos. Segundo Lopes, pouco mais do que mera especulação vincula o trabalho real em IA aos funcionamentos da mente humana, sendo uma disciplina cuja relação com organismos biológicos é principalmente metafórica7.

Essa distinção cumpre particular relevo pois a criação do algoritmo, a seleção e a inserção dos dados para treiná-lo não são realizados por máquinas, mas por seres humanos e suas respectivas subjetividades.

As mais simples escolhas reproduzem padrões que irão influenciar diretamente no comportamento dos algoritmos. Daí é que preconcepções podem gerar impactos em larga escala que amplificam o próprio vício que se pretendia eliminar – os chamados “bias” – vieses tendenciosos dos algoritmos que se originam dos criadores e programadores dos softwares8.

Por tais razões, Cury adverte que temas como a opacidade de procedimentos algorítmicos, enviesamentos discriminatórios e responsabilidade decisória exigem reflexões tanto quanto aos aspectos subjacentes à concepção e ao design dos sistemas, quanto às escolhas técnicas e à arquitetura algorítmica, área do conhecimento restrita basicamente aos profissionais das ciências da computação9.

Além disso, citado autor traz à reflexão questões da filosofia da tecnologia que precisam ser tematizadas, tais como a objetivação do indivíduo diante das ocultações do sistema; sua axiologia, racionalidade subjacente e a subdeterminação das escolhas técnicas, assim como os critérios de abstração da parcela da realidade algoritmicamente definida e sua incorporação nos sistemas inteligentes.

Para Heidegger, a técnica representa o desencobrimento, na medida em que o seu emprego revela as potencialidades ocultas da natureza dos objetos10. Contudo, a técnica artesanal e a tecnologia eletromecânica a que se referia Heidegger no passado pouco se parecem com a tecnologia digital que se desvela na atualidade.

A tecnologia digital contém uma ambiguidade: ao mesmo passo em que instrumentaliza o conhecimento, tornando possível o alcance do oculto e assim produzindo o seu desencobrimento, também promove o encobrimento, ao realizar, no caminho inverso, a abstração de parcela da realidade, descontextualizando-a para adaptá-la ao sistema virtual, tornando-se objeto recontextualizado sem correspondência com as suas origens11.

Nos mais diversos segmentos de especialização do conhecimento, a técnica se constitui numa expressão científica, criando uma interface entre o plano da investigação teórica e a aplicação prática do conhecimento. Segundo Popper, essa é a principal característica do conhecimento científico: observar as regras do modo técnico de produzir conhecimento e depois retornar às premissas conceituais e teóricas, cujos testes de falibilidade conduzem ao permanente aperfeiçoamento científico12.

Entretanto, nem sempre o real significado desse conjunto de regras técnicas será percebido. O encobrimento proposital, como refere Morin, induz à manipulação e a subjugação do homem pela técnica, o que sugere a relevância do seu conhecimento e estudo para o desvelamento da sua essência13.

No contexto do controle aduaneiro, as ferramentas tecnológicas de inteligência artificial se apresentam como um conjunto de regras técnicas que tem por finalidade conferir efetividade à atuação das administrações aduaneiras, cujo resultado último deve estar alicerçado não apenas nos procedimentos algorítmicos dos sistemas informatizados, mas noutro sistema de conhecimento – o sistema jurídico.

Dito de outro modo, as técnicas de gestão de risco aduaneiro devem estar disponíveis e em consonância com o Direito, nunca o contrário. Os direitos e as garantias fundamentais dos administrados exsurgem como concepção básica para a arquitetura das ferramentas, ainda que sua aplicação esteja justificada no poder de polícia.

No ano de 2019 a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)14 promoveu uma reunião entre quarenta e dois países com o objetivo de promover a inteligência artificial inovadora e confiável, que respeite os direitos humanos e os valores democráticos. Naquela ocasião, alguns princípios foram estabelecidos para a sua utilização:

1) A IA deve beneficiar as pessoas e o planeta, impulsionando o crescimento inclusivo e sustentável e o bem estar;

2) Os sistemas de IA devem ser projetados de maneira a respeitar o estado de direito, valores democráticos e diversidade, e devem incluir salvaguardas apropriadas (por exemplo, possibilitando a intervenção humana, quando necessária, para garantir uma sociedade leal e justa);

3) Deve haver transparência e divulgação responsável em torno de sistemas de IA para garantir que as pessoas entendam os resultados baseados em IA e, eventualmente, possam questioná-los;

4) Os sistemas de IA devem funcionar de maneira robusta, segura e protegida ao longo de todo seu ciclo de vida. Os riscos em potencial devem ser avaliados e gerenciados continuamente;

5) As organizações ou indivíduos que desenvolvem, implantam ou operam sistemas de IA devem ser responsabilizados.

A preocupação desses países com o respeito ao estado de direito, assim como com a transparência e a divulgação responsável apenas reforça que os sistemas de IA devem ser finalisticamente concebidos para proporcionar segurança jurídica – no caso que aqui interessa, segurança à relação jurídica aduaneira.

Aos administrados, intervenientes de comércio exterior, deve ser dado a conhecer – e compreender – as métricas e os parâmetros dos sistemas de inteligência artificial utilizados para o controle aduaneiro, especialmente para que as consequências futuras, negativas ou positivas dessas novas abordagens sejam calculáveis e influenciem, no presente, a sua tomada de decisões.

Todo o desenvolvimento tecnológico de uma sociedade democrática, sob uma ordem constitucional, só faz sentido quando ocorre para a promoção dos direitos fundamentais e sociais. O desenvolvimento tecnológico não pode estar dissociado do desenvolvimento humano.

Tem-se, dessa forma, o desafio de incorporar a tecnologia a uma dimensão de integralidade de direitos e deveres, a qual, como criação humana que é, sirva aos seus propósitos de promoção de dignidade e de instrumento de preservação.

Ad. Raquel Segalla Reis

REFERÊNCIAS

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Ad. Raquel Segalla Reis