Regime Jurídico Infracional no Brasil e na Argentina: principais pontos de divergência. Ad. Helen Martins de Carvalho (desde Braasil)

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1. Introdução

De acordo com Pablo Labandera[1], nas últimas duas décadas dois pontos marcaram a América Latina: o processo de codificação do direito aduaneiro e o abandono de uma concepção autoritária da Administração, afastando-se de prerrogativas outrora quase ilimitadas à Aduana para se assegurar um equilíbrio entre os poderes administrativos com o direito dos administrados.

Essa evolução normativa, contudo, não se refletiu no ordenamento jurídico brasileiro.

A principal norma aduaneira atualmente vigente é o Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, editado em um contexto histórico caracterizado pela arbitrariedade, durante o regime militar. Esse quadro político refletiu no modo como a Aduana brasileira foi estruturada no Brasil, trazendo um certo aspecto autoritário[2], especialmente em matéria infracional.

O Decreto-lei nº 37/66 também carece de algumas das principais características que singularizam os códigos jurídicos, que são a unicidade e a organicidade das normas.

Conforme apontam Diogo Fazolo e Maurício Timm[3], depois da publicação da “lei aduaneira”, o sistema aduaneiro brasileiro foi inundado com uma série de legislações, muitas das quais editadas por meio de decretos-leis – instrumentos normativos de iniciativa do Poder Executivo -, cujo teor muitas vezes foi repetitivo, o que comprometeu a clareza e fragilizou sua coerência normativa.

A modo de comparação, na vizinha Argentina, a principal base legal que regula a matéria aduaneira está sistematizada no Código Aduaneiro, promulgado pela Lei nº 22.415, de 02 de março de 1981.

A organização das normas aduaneiras argentinas em um código foi um importante marco para o país sul-americano, sobretudo porque trouxe uma regulamentação harmônica e sistemática, compreendendo a base do direito aduaneiro e seu encadeamento lógico, possibilitando maior segurança jurídica sobre as regras que regulam a matéria voltada ao comércio exterior.

Ao confrontar as duas legislações aduaneiras – brasileira e argentina -, as diferenças não são sentidas somente na unidade de suas regulações normativas, mas sobretudo na forma como cada país optou por tratar sobre o tema infracional aduaneiro.

A proposta do presente artigo é analisar brevemente os principais aspectos do regime infracional com o objetivo de contribuir para a ampliação do estudo do direito aduaneiro, cuja compreensão, acredita-se, propicia o aprofundamento e aperfeiçoamento do ambiente jurídico.

 

2. Regime Infracional Aduaneiro Brasileiro e a Responsabilidade do Agente

O Decreto-lei nº 37/66, em seu artigo 94, § 2º, estabelece que a responsabilidade por infração independe da intenção do agente ou do responsável e também da efetividade, da natureza e da extensão dos efeitos do ato.

Ao afastar a aferição da intenção do agente, a norma aduaneira instituiu a responsabilidade objetiva como regra geral no aspecto sancionador.

Em tese, para a aduana brasileira, não há distinção quanto à existência de culpa ou dolo, isto é, se o agente agiu por negligência, imprudência ou imperícia (conduta culposa), ou se objetivava não cumprir o comando normativo de forma ardil (conduta dolosa). Neste sentido, a mera inobservância do regramento jurídico aduaneiro sujeita o transgressor a uma penalidade.

Apesar de a norma dispor de forma rígida, não faltaram vozes contrárias para questionar a aplicação da responsabilidade objetiva ao direito aduaneiro sancionador, construindo-se – tanto no Brasil quanto na América Latina – uma doutrina sólida e muito bem embasada sobre o tema, dos quais se pode destacar os estudos dos brasileiros Diogo Fazolo, Cláudio Augusto Gonçalves Pereira, Solon Sehn, Fernando Pieri e dos uruguaios Andrés Varela e Pablo Labandera.

Convém dizer que a aplicação da responsabilidade objetiva no contexto do regime infracional se mostra inapropriado se analisado sob a perspectiva da chamada Aduana moderna, que busca balancear a facilitação do comércio utilizando mecanismos que não obstem o comércio lícito, ao mesmo tempo que garanta a segurança do comércio, combatendo práticas ilícitas.[4]

Um erro cometido por um interveniente não deveria tornar, por si só, sua operação ilícita, sem que fossem previamente analisadas as circunstâncias que o levaram à referida conduta. A análise das circunstâncias do caso são essenciais para aferição e aplicação da respectiva sanção[5].

Acrescenta-se que a responsabilidade objetiva se mostra incompatível com os acordos internacionais ratificados pelo Brasil[6], em especial com o Acordo sobre Facilitação do Comércio, incorporado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Legislativo n. 01/2016, promulgado pelo Decreto n. 9.326/2018, em seu artigo 3.3[7] e com a Convenção de Quioto Revisada, internalizada pelo Decreto Legislativo n. 56/2019 e promulgada pelo Decreto n. 10.276/2020, na norma 3.39 do Anexo J[8]. [9]

Ambas disposições citadas prestigiam o princípio da culpabilidade. Em matéria sancionatória, quando o antecedente é um comportamento que visa proibir e o consequente é uma sanção, não há como abstrair o elemento subjetivo.

É imprescindível que haja equilíbrio entre a conduta praticada e a pena aplicada. Do contrário, ao se aplicar o mesmo rigor àquele que comete um erro, de menor potencial ofensivo e sem intenção dolosa com aquele que pratica uma conduta ardilosa com objetivo de obter vantagem indevida, acaba-se por gerar um desestímulo à conduta pautada na boa-fé.

Caminhando neste sentido, no ano de 2024 foi trazida uma certa luz ao tema aqui retratado, com a apresentação ao Senado Federal brasileiro do Anteprojeto de Lei Geral de Comércio Exterior (Projeto de Lei nº 4.423/2024), aprovado na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, o qual ainda permanece em tramitação. Referido projeto de lei visa estabelecer normas gerais sobre o comércio exterior de mercadorias.

Interessante ponto contido no projeto de lei é que no artigo 4º, XIV, parágrafo único[10] o legislador previu que a regulação, a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior serão regidos por diversas diretrizes, dentre as quais se destacou a previsão de sanções proporcionais às infrações cometidas, e tratamento de erro escusável, porém a regulação dos referidos temas ficou relegada a ser disciplinada em legislação específica.

Neste sentido, apesar de referido projeto de lei optar por não se debruçar sobre o tema de infrações aduaneiras, também tratou de deixar registrado que em matéria infracional deve haver proporção entre a sanção a ser aplicada ao agente, preconizando, desta forma, o princípio da culpabilidade.

Levando em conta o atual cenário brasileiro, um caminho a ser considerado talvez seja aquele já apontado por José Lence Carlucci[11] há quase 30 anos: a adoção de um Código de Penalidades Aduaneiras, adaptado às novas realidades do comércio exterior para, efetivamente, instituir um mecanismo eficaz na prevenção e combate às infrações, fraudes e delitos aduaneiros, e que, também, esteja em harmonia com os acordos internacionais ratificados pelo Brasil.

 

3. Regime Infracional Aduaneiro Argentino e a Aplicação da Teoria Geral do Delito

Uma das principais inovações do Código Aduaneiro Argentino foi a regulamentação das infrações e dos delitos em seu corpo, reunindo em uma única codificação a definição dos atos reprováveis e seus elementos configuradores, assim como as respectivas consequências jurídicas que seriam aplicadas àqueles que cometessem o ilícito, seja penal ou infracional.

Ao tratar sobre infrações aduaneiras na Seção XII, Título II, o Código Aduaneiro Argentino estabeleceu no artigo inaugural que a infração se equipara à contravenção[12]. Esta disposição revelou a reformulação do regime jurídico aplicável às infrações aduaneiras, passando nesta oportunidade a enxergá-las como se contravenções penais fossem.

A partir de então deixou de existir uma distinção substancial entre infrações, contravenções e delitos. Horácio Alais Félix[13] aponta que a raiz da dificuldade de encontrar um critério diferenciador entre os institutitos mencionados se dá porque a estrutura normativa do delito e das contravenções é a mesma.

Sob essa perspectiva, como as infrações aduaneiras foram equiparadas às contravenções penais, suas premissas passaram a ser fixadas na teoria do delito, o que permitiu, graças à precisão conceitual deste ramo há muito tempo consolidado na doutrina, solucionar de forma mais acertada os impasses que por ventura surgissem[14]. Neste sentido, uma conduta somente será considerada uma infração aduaneira e passível de sanção se for típica, antijurídica e culpável.

Além disso, os princípios gerais do direito penal também passaram a ser aplicáveis às infrações aduaneiras[15].

A responsabilidade objetiva antes era a regra no direito aduaneiro argentino, a ponto de ter sido cunhada a frase “a alfândega julga fatos e não intenções”, repetida diversas vezes antes da promulgação do Código Aduaneiro[16]. Com a codificação do âmbito aduaneiro, a regra passou a ser a responsabilidade subjetiva.

O Código Aduaneiro Argentino, de fato, se afastou da visão ultrapassada de uma aduana autoritária e punitivista, o que se reflete na forma como disciplinou as infrações na legislação aduaneira, trazendo uma visão mais garantista.

Ao delimitar que as infrações aduaneiras se equiparam a contravenções, o sistema aduaneiro argentino passou a se apoiar no arcabouço jurídico do Direito Penal, afastando-se do regime das infrações administrativas e tributárias.[17]

Considerando esses parâmetros, uma sanção somente será legítima se houver a comprovação da culpabilidade do agente no caso concreto, em observância aos princípios gerais do direito penal.

 

4. CONCLUSÃO

Ao analisar, ainda que de forma sucinta, o regramento jurídico infracional do Brasil e da Argentina, é possível extrair diferenças substanciais que impactam diretamente no modo como a Administração Aduaneira de cada país procede com o seu respectivo poder punitivo estatal.

No Brasil, a aduana adota uma postura mais inflexível, preconizando pela responsabilidade objetiva, enquanto que na Argentina a abordagem é mais garantista, prescrevendo a responsabilidade subjetiva.

O estudo comparado desses dois países vizinhos é de grande valor para o ambiente jurídico, pois permite o aprofundamento do estudo do direito aduaneiro sancionador, matéria em construção jurídica no Brasil e que, eventualmente, poderá também ensejar avanços legislativos no futuro – que espera ser próximo.

 

5. REFERENCIAS

ALAIS. Horacio Felix. Régimen infraccional aduanero. Buenos Aires: Marcial Pons Argentina, 2011.

CARLUCI, José Lence. Um introdução ao Sitema Aduaneiro. São Paulo: Aduaneiras, 1996.

COTTER. Juan Patricio. Las infracciones aduaneiras. 2ª ed. Buenos Aires: Abelado Perrot.

FAZOLO, Diogo Bianchi. DO VALE; Maurício Darli Timm. Reforma aduaneira no Brasil: necessidade de harmonização das normas de direito aduaneiro sancionador. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión. Paraguay, Año 6, nº 11; Abril 2018.

FAZOLO. Diogo Bianchi. As infrações aduaneiras à luz do direito aduaneiro sancionador. Dissertação apresentada na Universidade Católica de Brasília como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Brasília, 2023.

FAZOLO, Diogo Bianchi. Simplificação de Hipóteses Infracionais pela Identificação do bem Jurídico Tutelado: Análise a partir da Doutrina de Gerson Augusto da Silva. In. VALLE, Maurício Dalri Timm do Vale; TREVISAN, Rosaldo (coords.). Perspectivas e desafios do direito aduaneiro no Brasil. – São Paulo, SP: Caput Libris Editora/NSM, 2024.

LABANDERA, Pablo. “A Potestade Sancionadora da Administração Aduaneira: o Devido Equilíbrio entre o Dever de Controle e as Garantias dos Administrados”, traduzido por Raquel Segalla Reis e Renata Sucupira. In. VALLE, Maurício Dalri Timm do Vale; TREVISAN, Rosaldo (coords.). Perspectivas e desafios do direito aduaneiro no Brasil. – São Paulo, SP: Caput Libris Editora/NSM, 2024.

LEONARDO. Fernando Pieri. Direito Aduaneiro Sancionador à luz do AFC/OMA, da CQR/OMA e do ATEC. In: PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves Pereira; REIS., Raquel Segalla. Ensaios de direito aduaneiro II. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023. Página 180.

PEREIRA, Claudio Augusto Gonçalves Pereira. “Infrações aduaneiras e seus elementos configuradores”. In: LEÃO, Gustavo Junqueira Carneiro; ARAÚJO, Renata Alcione de Faria Villela de. In Direito Aduaneiro e tributação aduaneira, em homenagem a José Lence Carluci. Leão, Araújo (Coordenadores). Rio de Janeiro: Lumen Juris, página 522.

PEREIRA. Cláudio Augusto Gonçalves Pereira. Breves apontamentos sobre a filtragem constitucional aplicada no sistema jurídico aduaneiro. In: PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves; REIS, Raquel Segalla. Ensaios de direito aduaneiro II. 1 ed. São Paulo: Tirant llo Blanch, 2023. Página 211-212.

SEHN, SOLON. Curso de direito aduaneiro. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

[1] LABANDERA, Pablo. “A Potestade Sancionadora da Administração Aduaneira: o Devido Equilíbrio entre o Dever de Controle e as Garantias dos Administrados”, traduzido por Raquel Segalla Reis e Renata Sucupira. In. VALLE, Maurício Dalri Timm do Vale; TREVISAN, Rosaldo (coords.). Perspectivas e desafios do direito aduaneiro no Brasil. – São Paulo, SP: Caput Libris Editora/NSM, 2024, página 194.

[2] PEREIRA. Cláudio Augusto Gonçalves Pereira. Breves apontamentos sobre a filtragem constitucional aplicada no sistema jurídico aduaneiro. In: PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves; REIS, Raquel Segalla. Ensaios de direito aduaneiro II. 1 ed. São Paulo: Tirant llo Blanch, 2023. Página 211-212.

[3] FAZOLO, Diogo Bianchi. DO VALE; Maurício Darli Timm. Reforma aduaneira no Brasil: necessidade de harmonização das normas de direito aduaneiro sancionador. In Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión. Paraguay, Año 6, nº 11; Abril 2018, p. 29-46.

[4] FAZOLO, Diogo Bianchi. Simplificação de Hipóteses Infracionais pela Identificação do bem Jurídico Tutelado: Análise a partir da Doutrina de Gerson Augusto da Silva. In. VALLE, Maurício Dalri Timm do Vale; TREVISAN, Rosaldo (coords.). Perspectivas e desafios do direito aduaneiro no Brasil. – São Paulo, SP: Caput Libris Editora/NSM, 2024, página 178.

[5] PEREIRA, Claudio Augusto Gonçalves Pereira. “Infrações aduaneiras e seus elementos configuradores”. In: LEÃO, Gustavo Junqueira Carneiro; ARAÚJO, Renata Alcione de Faria Villela de. In Direito Aduaneiro e tributação aduaneira, em homenagem a  José Lence Carluci. Leão, Araújo (Coordenadores). Rio de Janeiro: Lumen Juris, página 522.

[6] LEONARDO. Fernando Pieri. Direito Aduaneiro Sancionador à luz do AFC/OMA, da CQR/OMA e do ATEC. In: PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves Pereira; REIS., Raquel Segalla. Ensaios de direito aduaneiro II. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023. Página 180.

[7] 3.3. A penalidade imposta dependerá dos fatos e circunstâncias do caso e serão compatíveis com o grau e gravidade da infração

[8] Erros. 3.39. Norma. As Administrações Aduaneiras não aplicarão penalidades excessivas em caso de erros, se ficar comprovado que tais erros foram cometidos de boa-fé, sem intenção fraudulenta nem negligência grosseira. Quando as Administrações Aduaneiras considerarem necessário desencorajar a repetição desses erros, poderão impor uma penalidade que não deverá, contudo, ser excessiva relativamente ao efeito pretendido.

[9] SEHN. SOLON. Curso de direito aduaneiro. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.página 402.

[10] Art. 4º A regulação, a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior de mercadorias serão regidos pelas seguintes diretrizes:

XIV – previsão de sanções proporcionais às infrações cometidas, e tratamento ao erro escusável, a ser definido em legislação específica;

Parágrafo único. Observadas as diretrizes de que trata o caput, os temas relacionados à tributação sobre o comércio exterior, às infrações e penalidades e ao contencioso administrativo em matéria de comércio exterior serão disciplinados em legislação específica.

[11] CARLUCI, José Lence. Um introdução ao Sitema Aduaneiro. São Paulo: Aduaneiras, 1996, página 211.

[12] ARTICULO 892. – A los efectos de este código, el término infracción se equipara al de contravención.

[13] ALAIS. Horacio Felix. Régimen infracional aduanero. 1ª ed. Buenos Aires: Marcial Pons Argentina, 2011. Página 51.

[14] ALAIS. Horacio Felix. Régimen infracional aduanero. 1ª ed. Buenos Aires: Marcial Pons Argentina, 2011. Página 53

[15] COTTER. Juan Patricio. Las infracciones aduaneiras. 2ª ed. Buenos Aires: Abelado Perrot, 103.

[16] ALAIS. Horacio Felix. Régimen infracional aduanero. 1ª ed. Buenos Aires: Marcial Pons Argentina, 2011. Página 68.

[17] COTTER. Juan Patricio. Las infracciones aduaneiras. 2ª ed. Buenos Aires: Abelado Perrot, 2013, p. 98/99.